<$BlogRSDUrl$>

Trechos, textos e trecos

quarta-feira, maio 21, 2003


Eu gosto das minhas fragilidades e não me importo se você vai me achar menor porque as conheceu. Eu me conheço mais que você a mim.



Muita coisa ficou provada naquele sábado à noite. Pedro chegou na casa dela quando a chuva começava a melhorar, naquele dia que esteve escuro desde cedo.
Na chegada ele já dissera que não iria ficar para ir ao teatro com Lia, Paula e Flávio, como estava quase combinado. “Quase” porque Paula nunca dava sua resposta final, era sempre “pode ser”, “te ligo pra confirmar”, e por aí vai.
Mas Lia já nem ligava, ou pelo menos não ligou naquela noite.Estava vendo Matrix na TV e, como já era a terceira vez que se deslumbrava com o filme, ficou conversando existencialidades com Pedro.
Naquela sala faziam filosofia, análises e propecções sobre suas vidas. Tinham incertezas, tristezas e questões parecidas. E tinham um ao outro para se ajudarem a enfrentar a vida que avança em direção à morte.
Enfrentar não era o melhor verbo. Eles não enfrentavam a vida, eles se aconchegavam na vida do jeito que dava. E ia dando bem.
Os dois não namoravam, nem um com outro nem com mais ninguém. Havia pretendentes de ambas as parte, mas ele não vinha tendo sucesso na fase da manutenção e ela tinha saído de um namoro de um ano e cinco meses, que tinha dado trabalho e ainda dava saudades (não pelo namoro, que nunca deu certo, mas da fidelidade e da sintonia sexual – era química primitiva, de pele, cheiro e ritmo, coisa que não se acha toda hora e que sustentou a relação cheia de incompatibilidades de outras ordens).
Mas naquela noite a conversa era outra. Era um papo solto, sem direção nem motivo, sem nada a dizer, e assim algumas coisas foram ditas ali.
A noite corria solta, eles já tinham rido de tudo na TV, visto programas de entrevistas, animais correndo, novela das oito, iam zapeando os canais e os assuntos das conversas.
Pedro era bom massagista, sabia shiatsu e já estavam nessa fase do encontro, que sempre acontecia. Lia sabia que depois da massagem ele iria embora, era sempre assim. Eles se viam, se abraçavam, se davam colo, comiam alguma coisa (às vezes na rua, mas naquela noite pediram uma massa verde com recheio de ricota e nozes sensacional), até que ele lhe fazia uma massagem e se despediam.
Umas duas vezes ele ficou para dormir. Usou uma cueca samba-canção que esperava o filho de 11 anos dela crescer, trocou-se na frente dela, deitaram-se na mesma cama, mais massagem, nenhuma atividade sexual (pelo menos nada ortodoxo a esse respeito) e sono.
Dormiram juntos, sem sobressaltos, ela de shortdoll de malha, como gostava de dormir; todos à vontade e sem vontades outras. Coisa que não se explica, só se entende.
Ele não era gay. Mas não vinha sendo muito sexual. Na prática, nada, nada. Sexualidade latente, adiada sabe-se lá por quê.
E ela não tinha nada com isso, nem queria ter. Pouco tempo atrás teve um homem, como já disse, e eram felizes nesse setor. Mesmo recém-separada do melhor sexo que já teve na vida, Lia ia bem. Estava cada dia mais confortável com quem tinha escolhido ser. Feliz no hoje, com a vida pela frente para viver, sem ansiedades e com a sabedoria adquirida em muitos laboratórios, alguns enganos, boas leituras e conversas, curiosidades, sustos, medos e tristezas. Ah, e algumas alegrias – não concordo em quantificá-las em algumas, porque alegria é coisa que nunca é pouca.
Lia via a vida com a poesia que ela queria que a vida tivesse. E ela encontrou a serenidade que tornou possível enxergá-la.
Os amigos próximos também tinham esse dom. Poesia e preocupações existenciais em graus variados possuíam todos eles. O grupo mais seleto era formado por Lia, Paula, Pedro e João (outro amigão). Lia e João tinham dois filhos cada; ela, um casal; ele, dois meninos. Paula tinha um filho. Pedro não era pai. Flávio (outro sem filhos) não era tão próximo, mas estava querendo sair com Lia para tornarem mais visuais as longas conversas sobre filosofia e a vida (se é que não cometi aqui uma redundância) que vinham tendo em telefonemas quase diários nas últimas semanas. Ele fazia doutorado (tese sobre Nietzsche – não era “pouca merda”, não).
Pedro não dormiu naquela noite na casa de Lia porque tinha que dar aula de ioga às nove e meia de domingo (hoje em dia há quem malhe nos fins-de-semana...) e com ela era ainda pior, teria que acordar às cinco da manhã para entrar no ar às seis – Lia é locutora de rádio FM e televisão.
O que ficou provado afinal de contas? Que a amizade de Pedro e Lia é mesmo sólida. Não que houvesse dúvidas, mas ficou certificado.
Depois da aula dele e da locução dela foram tomar café da manhã no Bistrô do Livro, um café-livraria em Ipanema, bairro em que os dois viveram a maior parte de suas vidas. Saíram de lá para bairros próximos, Gávea, ela; Copacabana, ele. E seus pais continuam em Ipanema até hoje. (Pedro tinha perdido o pai no início da vida adulta, lá pelos 20 e poucos, época em que não era ainda o amigo íntimo de Lia que é hoje, e que viva em a tia gente boa da Paula. Ele era bem mais novo do que ela, ela é muito jovial até hoje, de tia não tem nada – é uma amigona da sobrinha e se dá muito bem com Lia).


- Que forma de inteligência é essa que torna viver tão difícil? Isso é excesso de cérebro ou burrice grossa.


This page is powered by Blogger. Isn't yours?